Agora ou
nunca
Marcelo
Coelho
Todo mundo, imagino, tem
sua frustração predileta. Nunca ter aprendido a nadar, não ter ido adiante nas
aulas de bateria. O motivo, claro, é a falta de tempo.
Mesmo assim, parece
estranho que se possa conviver durante décadas com um desses desejos
irrealizados. "Algum dia, algum dia...", dizemos, e a promessa talvez
tenha o sentido de prolongar nossa vida.
O futuro não está tão
perto a ponto de dizermos "agora ou nunca"; ficamos então
acalentando, até a velhice, projetos que nada têm de tão impossível assim.
Antes que as editoras
descobrissem os livros de autoajuda, havia a "Seleções do Reader's
Digest". Um dos ensinamentos da revista, lido na infância, ficou na minha
cabeça; a autoajuda pode ser tola, mas nunca é ruim, especialmente se chega na
idade certa.
O texto era sobre as
"chaves da felicidade". Não vou dizer que as detenho, longe disso.
Mas a revista dizia que devemos propor a nós mesmos, de tempos em tempos,
objetivos claros e relativamente fáceis de cumprir.
Que seja a pintura de uma
cerca, a confecção de um pudim, a economia de R$ 500 no fim do mês. Não
importa. A felicidade está, creio, em manter-se ativo.
O escritor Aldous Huxley
dizia que não há como alcançá-la diretamente. Trata-se de um subproduto, de um
efeito colateral, como o suor depois de um exercício.
Tenho muitas frustrações
crônicas. A fluência no inglês, por exemplo, é um velho fantasma em meu castelo
mal cuidado. Um dos grandes prazeres da terceira idade (volto à autoajuda) é
finalmente dedicar-se a coisas assim.
Frequentei por alguns
anos, portanto, um curso de conversação. Será que melhorei? Ainda que tenha
melhorado, já devo ter regredido ao ponto inicial, porque abandonei o curso há
uns cinco anos.
Esforço inútil, então? Ao
contrário. O problema de falar inglês direito deixou de ser problema. Meus
colegas tinham tantas dificuldades quanto eu. Fala-se e pronto! Não tive mais o
sentimento da impotência, e isso é mais importante do que atingir a perfeição.
Para o inglês, bem ou mal,
eu tinha facilidade. Mas a música... Quanta inveja dos que naturalmente se dão
bem nisso, como se acordes e colcheias fossem seu idioma natal! É um talento
mais misterioso, mais físico, mais inexplicável do que a capacidade para o
desenho ou para a matemática.
A matemática, queiramos ou
não, é um subcapítulo da inteligência. O desenho diz respeito à qualidade da
visão, mais bem distribuída do que a do ouvido. Como competir com os raros
privilegiados que contam com o chamado ouvido absoluto, capaz de identificar na
hora todas as notas de um acorde complicadíssimo? É como se, em música, a
maioria da humanidade fosse daltônica.
Coragem, rapaz! Coragem!
Meu problema nessa área nem era tanto a desafinação, mas o ritmo. Sou incapaz
de bater palmas no tempo dos outros; é como se a batida não fizesse sentido
para mim. Numa valsa, ouço só a melodia. O filme "Whiplash" me
fascinou pela arbitrariedade do "certo" e do "errado" nos
esforços de um baterista de jazz.
Resolvi interromper esse
tipo de queixas e depreciações a respeito de mim mesmo. A cada mau momento da
vida, entreguei-me ao piano, na punição de exercícios técnicos idiotas, que
como o subproduto de Huxley teriam o condão de me deixar feliz ao serem
superados.
Faltava quem me cobrasse
alguma exatidão. Para minha surpresa, depois de algumas poucas aulas
particulares, conformei-me às leis do metrônomo. Um, dois, um dois: o
tique-taque invariável da maquininha, a que nunca prestei atenção, e de que
sempre tive medo, tornou-se audível, como um "terceiro ouvido" a
reger minha mão direita e minha mão esquerda.
Bato cabeça nos exercícios
intermediários. Não os de ritmo, imagine. Os de mera afinação. Antes dos 80
anos, garanto, serei um concertista.
In Folha de São Paulo, 21 de outubro 2015