Música consola dores do Holocausto
Em meio ao chiado de uma gravação antiga, a
voz do tenor soa metálica, mas as palavras em alemão são nítidas e claras. A
voz da soprano é quente e sensual.
Estou ouvindo o dueto de amor do segundo ato
da ópera “Tristão e Isolda”, de Wagner, em uma gravação de 1943, com Max Lorenz
e Paula Buchner. Alguém pôs um clipe da gravação no YouTube, onde ela já foi
vista mais de 16 mil vezes.
Para mim, é uma porta de acesso à história de
minha família, dando diretamente para um domingo de abril de 1944, no campo de
concentração de Buchenwald. Meu avô, Hermann da Fonseca-Wollheim, médico e
então prisioneiro, tinha sido transferido para lá recentemente, vindo de uma
prisão da Gestapo em Hamburgo onde havia sido interrogado devido às suas
opiniões supostamente subversivas. Seis semanas mais tarde, ele morreria de
disenteria aguda, tornando-se uma das mais de 50 mil pessoas que morreram no
campo.
Naquele dia, meu avô escreveu uma carta à sua
mulher, Käthe, dizendo que estava bem de saúde, desfrutando do ar fresco
—provavelmente uma alusão ao seu trabalho nas pedreiras do campo de
concentração— e da vista “magnífica” dos montes Harz.
A carta é fascinante por outra razão. No 70º
aniversário do fim da guerra na Europa, no ano passado, meu marido,
comentarista político do “Wall Street Journal”, a usou como ponto de partida
para entrevistar meu pai (que completou 11 anos no dia da Vitória na Europa, 8
de maio de 1945) sobre suas recordações dos tempos da guerra e para refletir as
tensões que a Europa enfrenta hoje.
Mas o que me levou à busca que acabou me
conduzindo à gravação de “Tristão e Isolda” foi uma linha específica da carta.
“Hoje às 18h vou ouvir o concerto de Furtwängler no rádio”, escreveu meu avô à
minha avó. “Por que você também não liga o rádio aos domingos, para que
possamos pensar um no outro intensamente?”
Qual foi o concerto transmitido naquele dia?
Que música pode ter servido de ponte entre um catre no Bloco 59 e a sala de
estar da residência da família em Hamburgo, onde minha avó estava?
Fiquei comovida com a ideia da música servindo
como um canal de comunicação telepática entre duas pessoas que se amavam e que
o destino tinha separado. Não pude descobrir se o sistema de alto-falantes em
Buchenwald, normalmente usado para transmitir ordens, de fato difundia música
clássica nas noites de domingo.
No dia 17 de abril, ocorreu a cerimônia de
reconsagração do memorial de Buchenwald, onde foi inaugurada uma nova mostra. Entre
as histórias escolhidas está a de meu avô. A razão de sua prisão foi tão
incomum que chamou a atenção dos pesquisadores. O veredito foi
“ausländerfreundlichkeit”: “tratar estrangeiros com cordialidade”.
Como médico, meu avô tinha atendido ucranianos
que faziam trabalhos forçados numa fábrica das proximidades, estudando russo
para poder lhes dar um atendimento melhor. Ele foi ouvido dizendo “um dia todos
vamos ter que aprender russo” —uma afirmação que, especulou minha avó, pode ter
sido a razão que o levou a ser preso.
A Gestapo também encontraria uma carta escrita
por uma mulher ucraniana atestando a gentileza com que foi tratada por ele,
para ajudá-lo no caso de vitória do Exército Vermelho. Uma de suas gentilezas
tinha sido abrir as portas de seu consultório e colocar discos de música
clássica para tocar para seus pacientes ucranianos, acreditando que a música
poderia lhes servir de algum consolo, por temporário fosse.
In
Folha de São Paulo, 21 de maio de 2016.