Crianças que têm aulas de música ampliam
funções cognitivas para sempre
Estudo mostra de que forma as lições com
instrumentos moldam cérebro dos mais jovens
por Renato
Grandelle
19/06/2014
6:00 / Atualizado 19/06/2014 12:17
RIO - Uma
das características típicas dos seres humanos — dentre aquelas que nos
diferenciam dos demais animais — é a nossa capacidade praticamente única na
natureza de criar, tocar e apreciar música. Dos esquimós, no Ártico, passando
por habitantes dos desertos africanos, até tribos indígenas no meio da floresta
Amazônica, homens são capazes de compor, tocar, cantar e dançar (bem, quase
todos, pelo menos). Mas, como costuma dizer o neurocientista Oliver Sacks
(autor de “Alucinações musicais”), a música não é apenas uma forma pela qual
nos conectamos e criamos laços. Ela, literalmente, molda os nossos cérebros. Um
novo estudo divulgado ontem não só reforça a máxima de Sacks como constata que
a música é também capaz de aprimorar as nossas funções cognitivas.
De acordo
com o novo trabalho, crianças que recebem aulas de música regularmente ampliam
suas capacidades cerebrais pelo resto de sua vida adulta. A pesquisa publicada
na “PLOS One” mostrou que crianças que recebem aulas particulares de música por
pelo menos dois anos revelam maior atividade cerebral nas áreas associadas às
suas funções executivas — ou seja, os processos cognitivos que permitem aos
seres humanos processar e reter informações, resolver problemas e regular comportamentos.
— Como o
funcionamento executivo do cérebro é um forte indicador das conquistas acadêmicas que as pessoas podem vir a ter (mais
ainda que o tradicional QI), acreditamos que nossas descobertas têm implicações
educacionais importantes — afirmou a principal autora do estudo, Nadine Gaab,
do Laboratório de Neurociência Cognitiva do Hospital Infantil de Boston (EUA).
— Enquanto muitas escolas estão cortando os programas de música e gastando
mais tempo e dinheiro em testes preparatórios, nossas descobertas sugerem que o
aprendizado musical pode, de fato, ajudar as crianças a alcançarem metas
acadêmicas mais ambiciosas.
Atividade
cerebral cresce
O novo
estudo comparou 15 crianças de 9 a 12 anos que tinham aula de música a um grupo
de 12, da mesma idade, sem nenhum treinamento. Além disso, foram estudados dois
grupos de adultos, divididos entre músicos e não músicos. Os pesquisadores
observaram diversos fatores demográficos, como educação, status profissional e
QI e descobriram que as funções cognitivas (medidas por uma bateria de testes)
e a atividade cerebral (registrada por meio de imagens de ressonância magnética
funcional) eram melhores tanto em adultos quanto em crianças que tocavam algum
instrumento.
— O
estudo dos efeitos da música no cérebro já tem mais de dez anos, mas poucos grupos
se dedicam a ele — constata o neurocientista Jorge Moll, do Instituto D’Or de
Pesquisa e Ensino, no Rio de Janeiro. — É difícil saber por que os padrões
sonoros são tão engajantes, já que não dependemos da música para sobreviver.
Mas há várias evidências de que a música modula fortemente o aprendizado,
estimulando a capacidade cognitiva e a relação interpessoal. A percepção de um
ritmo influencia o sistema de atenção, induz ao movimento e otimiza o
metabolismo e a performance física.
A
explicação, segundo Oliver Sacks, um dos maiores especialistas mundiais no
tema, está no fato de a música ser uma linguagem tão poderosa quanto a da
comunicação verbal: “A atividade musical envolve várias funções do cérebro
(emocional, motora e cognitiva), muito mais do que as que usamos para o outro
grande feito humano, a linguagem. Por isso, a música é uma forma tão eficaz de
nos lembrarmos e de aprender. Não é por acaso que ensinamos às crianças
pequenas com rimas e músicas.”
A mesma
percepção tem a professora e doutora em Educação Andrea Ramal, autora de
diversos livros sobre aprendizado.
— Aulas
de música ajudam no aprendizado da criança ao longo da vida por diversas
razões. Tanto assim que a música se tornou disciplina obrigatória nas escolas —
constatou Andrea. — Além disso, a participação num conjunto musical desenvolve
a disciplina na criança, a capacidade de trabalhar em grupo e outras
competências que serão necessárias até no mercado de trabalho. Também trabalha
habilidades motoras e aumenta a concentração, que é essencial para o
aprendizado.
Mais
música, menos erros
O novo
trabalho vem se somar a um grupo cada vez maior de estudos que revelam a
importante relação entre música e cérebro. Uma pesquisa divulgada em novembro
do ano passado, por exemplo, revelara que os adultos que tocaram instrumentos
quando eram crianças (mas não tocavam há décadas) tinha respostas cerebrais
mais ágeis. Outro estudo, de setembro de 2013, mostrou que indivíduos que
sabiam tocar um instrumento também eram capazes de detectar erros de forma mais
rápida e acurada do que os não músicos.
Um dos
mais importantes trabalhos sobre o tema foi publicado também na “PLoS ONE”, em
fevereiro de 2008. Nele, cientistas da Johns Hopkins revelaram que, quando
músicos de jazz tocam de improviso (uma característica frequente desse tipo de
música), seus cérebros “desligam” áreas ligadas à autocensura e à inibição e
ativam aquelas que deixam fluir a autoexpressão. Ou seja, ao desligarem a
inibição, eles davam espaço à criatividade e acabavam conseguindo tocar uma
música inédita.
Por todas
essas características, especialistas acreditam que a música possa servir também
como mecanismo terapêutico. Como cita o próprio Oliver Sacks, “a música penetra
tão profundamente em nosso sistema nervoso que, mesmo em pessoas que sofrem de
devastadoras doenças neurológicas, ela é, comumente, a última coisa que
perdem.”
— Nossos
resultados têm implicações também para crianças e adultos que lutam com
problemas nessas funções do cérebro, como hiperatividade ou demência — afirmou Nadine.
— Novos estudos determinarão se a música pode ser usada como ferramenta de
intervenção terapêutica.
Fonte:http://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/criancas-que-tem-aulas-de-musica-ampliam-funcoes-cognitivas-para-sempre-12921667