Projeto cria músicas sobre vida do paciente para tentar frear Alzheimer
O empresário aposentado Hélio Elpidio Pereira de Queiroz,
que tem Alzheimer, e a filha Mariana.
Gabriel Alves
De F.São Paulo – 16/10/2016
A
medicina já sabe que a memória musical é uma das últimas que são perdidas por
causa da deterioração cerebral provocada pelo mal de Alzheimer. Ainda é difícil
dizer, porém, se é possível usar esse conhecimento para prevenir a progressão
da doença.
Uma
iniciativa independente quer testar essa hipótese, sem a pretensão e a
seriedade de um estudo acadêmico, unindo famílias e pacientes com Alzheimer a
músicos. A proposta do projeto Músicas Para Sempre é fazer com que os artistas
conheçam um pouco sobre a vida dos pacientes e produzam músicas sobre eles.
A
vida do empresário aposentado Hélio Queiroz, 65, foi a primeira que virou
música. Há três anos, Camila e Mariana, filhas de Hélio, acharam que havia algo
de estranho com o pai, então dono de uma escola profissionalizante. "Elas
perceberam que eu não estava fazendo coisas muito corretas, e eu não tinha essa
noção. E começaram a procurar um médico para mim, sem eu saber", diz.
No
começo foi difícil, ele conta. "Ninguém gosta de saber que tem uma doença
como essa. Você diz para você mesmo: 'não tenho isso!'". Após o impacto do
diagnóstico, Hélio conseguiu vender a escola com o auxílio das filhas. "A
escola estava ruim, ruim mesmo. Demorei um ano para vender. Depois disso, até
fiquei melhor", conta.
Hélio
responde bem aos vários medicamentos, que toma sem ajuda, segundo a filha
Mariana. Ele vive sozinho, dirige e pratica exercícios. "Estou aqui,
vivendo", diz.
A
ideia da homenagem no projeto Músicas Para Sempre nasceu como uma peça de
divulgação para o filme francês "A Viagem de Meu Pai", lançado neste
ano no Brasil. O personagem principal tem Alzheimer e o filme mostra a relação
dele com a filha. Retratar a vida de Hélio seria uma maneira de mostrar que
cenas do filme também aparecem na vida real.
O
ex-empresário não consegue esconder a felicidade ao se lembrar da
música-homenagem que recebeu. "Todos os meus amigos, minha família e
pessoas que me apoiam estavam lá. Tenho só a agradecer. Nunca em minha vida
imaginei sentir 10% dessa emoção", relata.
CANÇÃO
A
música sobre a vida de Hélio foi composta por Lucas Mayer. Ela começa assim:
"Para começar a sua história/Na ladeira da Faap, rolimã/Ia pedalando todo
dia para a escola/Pra sobrar aquela grana pro sorvete de amanhã/Seu nome
misturou o nome do seu pai, com o do seu vô/E para nós/Desde pequenas era comum
ouvir na sua voz/Meu nome é Hélio Elpidio Pereira de Queiroz"
E
segue com o refrão: "Pai, estamos aqui pra te lembrar/Que onde o mar
está/É aonde queremos ir/E você vai nos levar".
Para
o compositor, a parte mais difícil foi selecionar o que ia entrar ou não na
música. Com menos da metade das histórias, a canção já tinha mais de cinco
minutos. "Ter que escolher os momentos da vida de uma pessoa para
encaixá-la na música é estranhíssimo, porque eu estava selecionando o que seria
mais importante do meu ponto de vista. Por exemplo, não consegui colocar o
Chico, melhor amigo do paciente, na letra."
Apesar
disso, o resultado foi aprovado por todos os envolvidos, inclusive pelo maestro
João Carlos Martins, apoiador do projeto e entusiasta das propriedades
terapêuticas e transformadoras da música.
"Vivi
a experiência de ter uma mãe com Alzheimer e um pai com memória de elefante até
o fim da vida", diz.
Que
há alguma relação entre Alzheimer e música ele já sabe há tempos. "Quando
a gente queria acalmar minha mãe, meu pai reproduzia minhas interpretações da
obra de Bach e eu observava a tranquilidade que vinha do olhar dela, enquanto
ouvia gravações do filho que ela já não reconhecia mais."
Quanto
à memória, tudo indica que Martins, 76, puxou ao pai, que "quando morreu,
aos 102 anos, estava plenamente lúcido e sabia 200 sonetos de cor".
A
música habita regiões distintas das da memória convencional. Uma música
relacionada a fatos da vida passada do paciente, como uma estratégia de
retenção, pode funcionar como uma "chave para o passado", explica
André Palmini, neurocientista do Instituto do Cérebro da PUC-RS.
A
memória da melodia, principalmente, é bastante preservada, mesmo no Alzheimer,
explica Wagner Gattaz, professor de psiquiatria da USP. De todo modo, diz o
professor, as memórias autobiográficas costumam durar mais. "A música já é
usada para tranquilizar, mas pode sim ajudar a guardar mensagens simples",
diz.