O prazer da consonância
Você prefere um tapa ou um beijo?
Azul ou amarelo? Mozart ou Rolling Stones? Cada estímulo sensorial recebido do
mundo exterior acaba por gerar um sentimento em nossa mente, e esse sentimento
pode variar do prazer irrecusável à ojeriza insuportável, do deleite estético à
repulsa física.
Muitos desses sentimentos e preferências são codificados em nossa
constituição biológica, já nascemos com eles. Não existem recém-nascidos que
preferem um tapa a um beijo, nascemos com essa preferência e com os sentimentos
associados. No outro extremo, existem as preferências relacionadas ao ambiente
em que crescemos e fomos educados. É impossível acreditar que o prazer gerado
ao assistir a um time de futebol e a repulsa pelo time adversário já estejam
determinados quando nascermos. Seguramente dependem de nossa cultura e
educação.
Mas há casos intermediários, em que não se sabe se os sentimentos
gerados por um estímulo sensorial são derivados das características biológicas
de nossa espécie, da influência cultural ou de uma mistura desses fatores. É
nessa categoria que está a preferência pelos sons e sua combinação.
Para nós, um conjunto de notas dissonantes gera uma sensação
desagradável, enquanto conjuntos de notas consonantes geram sensações
agradáveis. Os gregos já sabiam disso. Se você não conhece o conceito, ouça
esse vídeo de 30 segundos, em que a mesma música é tocada com uma combinação de
notas consonantes e dissonantes.
Faz milhares de anos que a humanidade discute a razão do desprazer
causado pela dissonância. A opinião generalizada é que nosso sistema auditivo,
por suas características intrínsecas, distingue esses dois tipos de estímulos e
atribui sensações boas somente às combinações ditas consonantes. Por esse
motivo, praticamente a totalidade das músicas que ouvimos é composta com notas
consoantes, seja rock, funk, música clássica ou samba.
Mas agora um grupo de cientistas investigou se essa preferência
pela consonância também existe em populações que nunca tiveram contato com a
música ocidental. São os habitantes de Tsimane, na região amazônica da Bolívia.
Essa comunidade não tem luz elétrica, não escuta rádio e vive isolada no meio
da floresta, em uma região onde somente se chega de barco. Sessenta e quatro
pessoas dessa vila foram estudadas. Elas aceitaram ouvir música composta por
conjuntos de notas dissonantes ou consonantes, e foi solicitado a elas que
reportassem o prazer gerado por esse conjunto de músicas.
O mesmo estudo foi feito com pessoas de São Borja, uma pequena
cidade na Bolívia, de La Paz, dos EUA e, finalmente, músicos dos EUA. O que os
cientistas descobriram foi que a população de Tsimane, é capaz de distinguir
essas duas formas de música, mas não acha uma mais agradável do que a outra.
Mas basta chegar a São Borja, distante 50 quilômetros de Tsimane, onde já há rádio
e televisão, para que as pessoas começassem a achar a música dissonante
desagradável. E isso se repete em La Paz e nos EUA.
A conclusão é que nossa preferência pela consonância é cultural, e
não genética. Ouvimos música composta desta maneira desde que nascemos e
passamos a só gostar desse tipo de combinação de notas. Já as pessoas de
Tsimane, que nunca foram expostas à música ocidental, não acham que uma forma
gera mais prazer do que a outra.
Esse resultado sugere que no passado distante a humanidade fez uma
opção pela música consonante e a preponderância dessa forma de compor foi
transmitida de geração a geração, alimentando essa forma de compor e
fortalecendo nosso restrito gosto musical. A preferência pela consonância não é
uma característica do nosso sistema nervoso, é produto de nossa cultura. Esse
exemplo mostra quão poderosa pode ser a herança cultural na espécie humana. É
uma lição de humildade para quem vive pregando a existência de genes para toda
e qualquer característica da nossa espécie.
MAIS INFORMAÇÕES:
INDIFFERENCE TO DISSONANCE IN NATIVE AMAZONIANS REVEALS CULTURAL VARIATION IN
MUSIC PERCEPTION. NATURE VOL. 535 PAG. 547 2016
FERNANDO REINACH É BIÓLOGO in
O Estado de S.Paulo 06 de agosto de 2016.