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quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Agora ou nunca

Marcelo Coelho



Todo mundo, imagino, tem sua frustração predileta. Nunca ter aprendido a nadar, não ter ido adiante nas aulas de bateria. O motivo, claro, é a falta de tempo.

Mesmo assim, parece estranho que se possa conviver durante décadas com um desses desejos irrealizados. "Algum dia, algum dia...", dizemos, e a promessa talvez tenha o sentido de prolongar nossa vida.

O futuro não está tão perto a ponto de dizermos "agora ou nunca"; ficamos então acalentando, até a velhice, projetos que nada têm de tão impossível assim.

Antes que as editoras descobrissem os livros de autoajuda, havia a "Seleções do Reader's Digest". Um dos ensinamentos da revista, lido na infância, ficou na minha cabeça; a autoajuda pode ser tola, mas nunca é ruim, especialmente se chega na idade certa.

O texto era sobre as "chaves da felicidade". Não vou dizer que as detenho, longe disso. Mas a revista dizia que devemos propor a nós mesmos, de tempos em tempos, objetivos claros e relativamente fáceis de cumprir.

Que seja a pintura de uma cerca, a confecção de um pudim, a economia de R$ 500 no fim do mês. Não importa. A felicidade está, creio, em manter-se ativo.

O escritor Aldous Huxley dizia que não há como alcançá-la diretamente. Trata-se de um subproduto, de um efeito colateral, como o suor depois de um exercício.

Tenho muitas frustrações crônicas. A fluência no inglês, por exemplo, é um velho fantasma em meu castelo mal cuidado. Um dos grandes prazeres da terceira idade (volto à autoajuda) é finalmente dedicar-se a coisas assim.

Frequentei por alguns anos, portanto, um curso de conversação. Será que melhorei? Ainda que tenha melhorado, já devo ter regredido ao ponto inicial, porque abandonei o curso há uns cinco anos.

Esforço inútil, então? Ao contrário. O problema de falar inglês direito deixou de ser problema. Meus colegas tinham tantas dificuldades quanto eu. Fala-se e pronto! Não tive mais o sentimento da impotência, e isso é mais importante do que atingir a perfeição.

Para o inglês, bem ou mal, eu tinha facilidade. Mas a música... Quanta inveja dos que naturalmente se dão bem nisso, como se acordes e colcheias fossem seu idioma natal! É um talento mais misterioso, mais físico, mais inexplicável do que a capacidade para o desenho ou para a matemática.

A matemática, queiramos ou não, é um subcapítulo da inteligência. O desenho diz respeito à qualidade da visão, mais bem distribuída do que a do ouvido. Como competir com os raros privilegiados que contam com o chamado ouvido absoluto, capaz de identificar na hora todas as notas de um acorde complicadíssimo? É como se, em música, a maioria da humanidade fosse daltônica.

Coragem, rapaz! Coragem! Meu problema nessa área nem era tanto a desafinação, mas o ritmo. Sou incapaz de bater palmas no tempo dos outros; é como se a batida não fizesse sentido para mim. Numa valsa, ouço só a melodia. O filme "Whiplash" me fascinou pela arbitrariedade do "certo" e do "errado" nos esforços de um baterista de jazz.

Resolvi interromper esse tipo de queixas e depreciações a respeito de mim mesmo. A cada mau momento da vida, entreguei-me ao piano, na punição de exercícios técnicos idiotas, que como o subproduto de Huxley teriam o condão de me deixar feliz ao serem superados.

Faltava quem me cobrasse alguma exatidão. Para minha surpresa, depois de algumas poucas aulas particulares, conformei-me às leis do metrônomo. Um, dois, um dois: o tique-taque invariável da maquininha, a que nunca prestei atenção, e de que sempre tive medo, tornou-se audível, como um "terceiro ouvido" a reger minha mão direita e minha mão esquerda.
Bato cabeça nos exercícios intermediários. Não os de ritmo, imagine. Os de mera afinação. Antes dos 80 anos, garanto, serei um concertista.

In Folha de São Paulo, 21 de outubro 2015



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